segunda-feira, 24 de setembro de 2007

O retorno dos fatos

Hoje iniciei outro blog, dedicado aos eventos históricos. Eventos? Acontecimentos? Mas por que? Os Annales não cansaram de denunciar a história 'acontecimental', aquela que se dedicava apenas a narrar fatos vazios? Todo o advento da historiografia moderna não foi definido por Hannah Arendt como a ascensão dos processos, que esvaziam a importância dos eventos individuais?

É, mas não há como tratarmos de história contemporânea sem tratarmos dos eventos. O presente é "dominado pela tirania do acontecimento" (Pierre Nora). Além disso, nossa época, de forma inédita, vê seu presente com um sentido já 'histórico'. Desde o fim do século XIX, talvez, a história se desenrola diante de nossos olhos. Todos os contemporâneos perceberam que a Grande Guerra de 1914-1918 era um acontecimento essencial na história da humanidade e as cidades destruídas eram vistas por alguns como um memorial mais importante que as ruínas de Pompéia. Mas o maior exemplo dessa atitude que François Hartog chama de 'presentismo' foi, provavelmente, o 11 de setembro de 2001. Ainda enquanto as imagens se apresentavam na televisão, ao vivo, o sentido histórico daquele acontecimento, fosse qual fosse, era proclamado.

Com isso, nossa contemporaneidade tratou de devolver sentido ao simples evento, ao acontecimento antes desprezado. Agora, em um único acontecimento se vislumbra toda uma longa história: "para que o suicídio de Marilyn Monroe possa tornar-se um acontecimento é necessário [...] que milhões de homens e mulheres possam ver nele o drama do star system, [...] a futilidade de qualquer sucesso" (Pierre Nora). É nesse sentido que eu pretendo falar dos acontecimentos. O evento é um símbolo do processo histórico.

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

O problema da história cultural

O seminário Antigos e Modernos foi aberto pelo professor Ulpiano T. Bezerra de Menezes, da USP, e seu discurso foi auspicioso. Resumindo, ele falou algo como: é muito bom reunirmos pesquisadores para pensar e discutir seu ofício, escrever a história, quando vemos a maioria das universidades brasileiras produzindo uma história que não discute seus temas: identidade, cultura, "e, principalmente, representação". Em sua conferência, no segundo dia do seminário, ele voltou à carga: a história cultural é "despolitizada", "abstrata", ela faz história "como se vivêssemos em um universo puro de sentido".

É necessário, porém, fazer uma ressalva. O problema não está na história cultural. Quem foi meu aluno de História Contemporânea sabe que eu adoro A sagração da primavera, do historiador canadense Modris Eksteins, quase quinhentas páginas de história cultural que são leitura obrigatória no meu curso. O problema é a história cultural mal feita. Essa história que, infelizmente, tem sido muito freqüente nos últimos anos.

De fato, não há nenhum problema em fazer história usando conceitos como representação e identidade. Ou fazer história da cultura popular ou da cultura oral. O problema é usar conceitos como fórmulas, sem discuti-los, sem problematizá-los. O problema é ler um historiador e usar seu método e seus conceitos como uma receita para estudar qualquer coisa. O problema é fazer história como se a cultura fosse independente da sociedade que a produziu.

Me parece impossível discutir história sem discutir seus conceitos. Se algum historiador acha, à sério, que "tudo é representação" ou que "tudo é cultura" (e eu já ouvi as duas afirmações), então temos um problema. Porque se "tudo é representação", eu posso dizer que qualquer coisa é uma representação e, conseqüentemente, toda vez que eu fizer essa observação ela é vazia. Se eu disser que eu estudo as representações de alguma coisa, o que eu estou estudando? Do mesmo modo, se "tudo é cultura", então o que é a história da cultura? É claro que termos como 'representação' e 'cultura' não têm definições fáceis, mas acho que os historiadores que os usam deveriam ter mais cuidado ao utilizá-los. Estudando para minha tese de doutorado, por exemplo, encontrei um antropólogo, Richard Handler, que argumenta que 'identidade' é um termo "peculiar ao moderno mundo Ocidental" e que seu uso "como uma ferramenta conceitual trans-cultural neutra deve ser evitado". Não sei se ele está certo, mas tenho certeza de que diversos historiadores deveriam lê-lo e pensar um pouco melhor antes de escrever sobre essa questão.

Aqui no Brasil temos a tendência - e isso ultrapassa as fronteiras da história cultural - de ler alguma autoridade e usar suas questões para discutir os assuntos que nos interessam. Lembro-me de que uma vez me falaram de um aluno que apresentou ao programa de pós-graduação da UnB uma proposta para estudar a Suma teológica, de São Tomás de Aquino, com a metodologia de Roger Chartier. Como??? Desde os Annales que sabemos que "ao definir o seu objeto de estudo, o historiador tem igualmente de 'inventar' as suas fontes, que geralmente não são apropriadas, tal como estão, ao seu tipo de curiosidade" (François Furet). Ou seja, o historiador 'cria' sua metodologia a partir de seu objeto de estudo. As fontes e o 'modo de usá-las' são específicos a um problema e é extremamente difícil adaptá-los a problemas e questões diferentes. Se vou estudar a comida típica no Brasil contemporâneo ou o comércio livreiro na França setecentista, me parece óbvio que eu terei que usar questões diferentes, fontes diferentes e métodos diferentes.

Finalmente, as idéias e a cultura não podem ser desligadas do mundo. Qualquer manifestação cultural tem significados que ultrapassam o mundo cultural e se relacionam com a sociedade, a economia e a política da população. Deixar esses significados de lado é, na minha opinião, ignorar uma faceta importante da produção cultural. É como tentar discutir as idéias de Marx e 'esquecer' que houve uma Revolução Francesa antes dele e que havia uma Revolução Industrial ocorrendo enquanto ele escrevia. A história cultural e a história das idéias não podem enveredar por esse caminho.

Para concluir, volto à conferência do professor Ulpiano. Falando sobre a 'abstração' da história recente, ele levou a questão à discussão da fonte histórica, o documento, que era o tema central de sua conferência. A história cultural mal feita tem colocado uma tal ênfase nas novas fontes e em suas possibilidades que corremos o risco de criar um novo descolamento e passar a fazer uma "história documental". É preciso estar atento e lembrar que a fonte é apenas um documento. Ao invés de fazer 'história iconográfica', devemos fazer 'história da sociedade na dimensão iconográfica'. Ao invés de fazer 'história oral', 'história da sociedade na dimensão oral'.

domingo, 9 de setembro de 2007

Generalizações e abstrações da história - e a questão da história científica (de novo!)

Como são as coisas... há menos de um mês eu escrevi neste blog um texto sobre a história científica criticando um artigo do professor Norberto Luiz Guarinello (por ainda utilizar essa idéia ultrapassada) e, na quinta-feira, 6 de setembro, assisti uma conferência do próprio professor Guarinello, muito simpático e bem-humorado, e me vi concordando com muitos dos pontos apresentados por ele.

O tema foi 'A criação da História Antiga', ou seja, a discussão da"artificialidade das fronteiras internas que a história científica criou para si mesma".

Segundo o professor Guarinello, o procedimento básico para a leitura de um documento histórico é a generalização. É através da criação de abstrações conceituais como 'Antigüidade tardia', 'cultura mediterrânica', 'economia antiga' e outras que podemos comparar documentos e fazê-los dialogar entre si. A descoberta de um papiro egípcio com dados sobre uma fazenda do período romano não teria nenhum sentido se não pudéssemos compará-lo com dados de outras unidades econômicas defasadas no tempo e no espaço. Assim, colocamos lado a lado produções oriundas da Itália, do Egito, da Espanha e falamos de uma 'cultura mediterrânica'. Comparamos documentos produzidos entre os séculos IV e VII e falamos de uma 'Antigüidade tardia' ou, então, de uma 'Primeira Idade Média'. Comparamos dados sobre escravidão, produção de alimentos, comércio e minas de prata para falar de uma 'economia antiga'. Sem essas abstrações e generalizações é impossível fazer história, mas é essencial que os historiadores estejam alertas para a sua arbitrariedade.

Essa arbitrariedade reaparece na questão dos períodos históricos e na divisão das disciplinas de uma universidade. Noventa e nove entre cem cursos de história no Brasil apresentam as disciplinas 'História Antiga', 'História Medieval', 'História Moderna', 'História Contemporânea', 'História da América' e 'História do Brasil'. Por que? A América tem uma história separada daquela do continente europeu? É possível separar o Brasil da América? Não há uma 'história contemporânea da América' ou uma 'história antiga do Brasil'?

Na verdade, como ressaltou o professor Guarinello, essa divisão traduz ainda uma questão ideológica: haveria uma continuidade na história do mundo que permitiria examinar as origens de nossa civilização até a Antigüidade. Assim, a 'História Antiga' não é apenas a história das civilizações que existiram em um determinado período de tempo, mas a 'história das origens antigas do mundo contemporâneo'. Já falei neste blog contra essas apropriações da Antigüidade e o professor Guarinello foi igualmente duro ao atacar esse tipo de história: deve-se fazer História Antiga buscando-se entender as civilizações antigas por seu próprio mérito; buscando compreendê-las em suas próprias especificidades.

Mas há ainda uma outra questão que não foi abordada na palestra do professor Guarinello: por que seguir essa divisão historiográfica? A divisão das disciplinas da história acadêmica surgiu no século XIX, quando a história se profissionalizou e tornou-se necessário escrever a história do mundo pós-Revolução Francesa (para detalhes, recomendo o artigo 'O nascimento da história', de François Furet, publicado em seu livro A oficina da história). Essa divisão não mudou até hoje. Aqui no Brasil, apenas acrescentamos nossas 'disciplinas específicas', as histórias da América e do Brasil (e, mais recentemente, a 'História da África'). Mas, se reconhecermos a arbitrariedade e a artificialidade das fronteiras internas à história, por que não podemos mudá-las? Por que não estudar 'História do capitalismo' ou 'História da democracia' ou 'História da escravidão' ou 'História das colonizações' ou 'História da tecnologia'? Seriam divisões igualmente arbitrárias, mas, afastando-se das divisões oitocentistas, creio que uma divisão temática das disciplinas históricas refletiria melhor os rumos que a história pretende seguir hoje.

Ao final da palestra, quando a palavra foi dada ao público, o professor Francisco Murari Pires, organizador do seminário e professor de história antiga da USP, interpelou o palestrante em relação a seu uso do termo 'história científica'. Era a pergunta que eu gostaria de ter feito: "por que história científica? De que ciência estamos falando?"

Disse o professor Guarinello que "uma auto-definição da história como ciência é um ato de poder social", pois "a ciência é uma instituição do mundo moderno" - e uma das instituições modernas de maior prestígio. Além disso, a ciência é eminentemente leiga: "se não rotularmos a história como ciência, como argumentar contra explicações religiosas para o passado?"

Para o professor Guarinello, no entanto, o pressuposto de que a história seja uma ciência traduz-se na idéia de que "o passado é ordenado, que o passado é racional e pode ser apreendido racionalmente através dos vestígios". Discordo fundamentalmente dessa idéia. Creio que a 'ordenação' e a 'racionalidade' do passado aparecem apenas depois que o historiador organiza os vestígios em sua trama, em seu enredo histórico. Para mim, o passado não é nem ordenado, nem racional, somos nós que o produzimos assim.

Ao final de tudo, o professor Murari ainda não parecia convencido, como eu também não estou, da necessidade do rótulo de ciência para a história. Disse o professor Guarinello, "essa é a marca de um bom cientista". Apesar de não concordar com tudo, sou obrigado a aplaudir uma excelente conferência.

terça-feira, 4 de setembro de 2007

Antigos, modernos e o anacronismo na história

Esta semana estou em São Paulo, acompanhando o seminário Antigos e modernos: diálogos sobre a (escrita da) história. Estamos apenas no terceiro dia (de um total de seis) do seminário, mas já assisti conferências que fizeram a viagem valer a pena.

Já no primeiro dia, o professor Pascal Payen fez uma sensacional exposição abordando a historiografia oitocentista sobre a época helenística a partir da noção de conquista.

Em primeiro lugar, ele examinou a historiografia antiga sobre as conquistas militares. E apresentou uma análise instigante de Heródoto sob o ponto de vista da dicotomia conquistador / conquistados. Segundo ele, o interesse de Heródoto se detém sempre nos conquistados, sejam eles gregos ou bárbaros. Eu sempre li análises e, conseqüentemente, imaginei e entendi a História do ponto de vista da polarização grego / bárbaro. Evidentemente, essa classificação tradicional faz parte da aparelhagem mental do "pai da História", mas o próprio Heródoto fez questão de marcar e anunciar o abandono dessa dicotomia em seu primeiro parágrafo: "para que os feitos, tanto dos helenos quanto dos bárbaros, não fiquem sem glória". A possibilidade de leitura feita pelo professor Payen abre horizontes interessantes para pensar a obra de Heródoto e a historiografia do mundo antigo.

Depois, na parte principal de sua conferência, Payen mostrou como Droysen, Grote e outros menos conhecidos (pelo menos por mim) examinaram e discutiram as conquistas de Alexandre do ponto de vista de suas próprias preocupações, nomeadamente, a unificação pela conquista prussiana com as conseqüentes possibilidades de desenvolvimento do Estado nacional alemão (Droysen) e a questão do império britânico na Índia (Grote). Ao mesmo tempo, examinou como a historiografia contemporânea ainda é devedora da idéia de Droysen de que a época helenística não foi uma decadência, mas sim um florescimento do helenismo em um novo contexto.

No final, respondendo às indagações do público, o professor Payen fez um vigoroso elogio do artigo de Nicole Loraux sobre o anacronismo (presente na coletânea Tempo e história, da Cia. das Letras). Como Droysen e Grotte fizeram no século XIX, por ser ele mesmo um ser histórico, "o historiador só pode colocar ao passado questões do presente". Depois, de posse das respostas encontradas no passado, o historiador pode questionar seu presente com as respostas obtidas no passado. Com isso, "o anacronismo não é algo que se deve fugir, mas uma fonte de riqueza para o historiador".

(editada e ampliada em 5/9/2007)

sábado, 1 de setembro de 2007

Pra que serve a história da história?

Se a história científica é apenas a preocupação com "fontes antes primárias do que secundárias", então a história até hoje é científica. Mas é evidente que não se trata apenas disso. A escola dita "positivista" queria encontrar uma 'verdade' maiúscula que não é mais possível hoje em dia.

"Persuadimo-nos progressivamente de que o fato que se passou realmente, ou as condições da vida verdadeira de cada época nos escaparão sempre, de que os abordamos através de uma barreira deformadora: as fontes que deles falam."

Sei que já citei essa passagem aqui antes. Mas, como todo aluno meu sabe, gosto muito de Georges Duby. E foi Duby quem primeiro me justificou o estudo que tento fazer, a história da história. Estudar a historiografia de um período é

"considerar sobretudo a maneira como os fatos foram relatados. Ou seja, estudar o vestígio por si próprio [...]. O que me interessa, pois, é a maneira como o acontecimento havia sido, não direi sequer percebido, mas fabricado pelos meus predecessores, os historiadores."

Com esse tipo de abordagem, Duby conseguiu realizar estudos que, partindo muitas vezes de um único documento ou de um único personagem, vão tecendo tramas ao redor desse início aparentemente modesto e o inserem em uma 'realidade' muito maior. Assim, por exemplo, Guilherme Marechal, obra escrita a partir da análise de uma biografia encomendada pelo filho do biografado, não é estudo da vida de um regente da Inglaterra no início do século XIII, mas investigação sobre toda a instituição da cavalaria como percebida e fabricada naquela época.

Mas há, ainda, uma outra abordagem possível para o estudo da historiografia. Pode-se estudar a produção histórica fazendo-se outras perguntas: como os historiadores conceberam sua tarefa? como apresentaram suas obras? o que pretendiam com elas? a que se referiam quando escreviam a palavra 'história'? quais eram seus modelos? suas fontes? para quem falavam?

Em suma, é possível fazer história da história buscando "indicar as balizas e marcar as etapas da longa história do conceito de história" (François Hartog; grifo meu). Diferentes posições teóricas, diferentes idéias sobre a função e a 'natureza' da história se colocam em uma posição de alteridade em relação ao trabalho do historiador contemporâneo. Assim, examinar os conceitos de história de nossos antecessores historiadores é pensar sobre nossas idéias de história, seu significado, sua função, seu método. Ou seja, fazer teoria da história, "pensar a história fazendo história" (Hartog).

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Do positivismo aos Annales, o breve momento em que a história foi ciência

Este texto está praticamente pronto há dias e nunca consigo terminá-lo direito e publicá-lo. Aqui vai, ainda em uma versão não muito 'polida', mas, espero, legível e compreensível. Rezemos para que os próximos textos não tenham uma gestação tão demorada quanto esse :0)

"O século XIX foi a belle époque da história: aquela da história considerada como uma ciência. E não apenas uma ciência entre as outras, mas, ao lado da psicologia, uma das ciências fundamentais do espírito. Pois todas as outras se ocupavam de suas produções: da linguagem, das literaturas, das religiões, das mitologias, da arte; não eram mais que histórias particulares."

Essa época descrita pelo historiador polonês Krzysztof Pomian chegou ao fim em 1929, com a fundação da hoje famosa revista Annales d’histoire économique et sociale, dirigida pelos professores da Universidade de Estrasburgo Marc Bloch e Lucien Febvre. Formados na época do impacto da corrente sociológica de Émile Durkheim e afastados dos principais centros de pesquisa histórica na França, os historiadores dos Annales dirigiram sérias críticas a seus antecessores 'positivistas': estreiteza de visão, ingenuidade epistemológica, concentração em eventos individuais e na história política, cuja única lógica explicativa é a da narração - o que aconteceu antes explica o que aconteceu depois. Nas palavras de Lucien Febvre:

"Abro a História da Rússia [de Charles Seignobos]: tsares grotescos, tragédias palacianas, ministros corruptos, burocratas aduladores, decisões arbitrárias à vontade. Mas a vida forte, original, profunda desse país, a vida da floresta e da estepe, o fluxo e o refluxo dos movimentos populacionais, [...] sobre tudo isso, que se mostra diante de mim sob a forma de pontos de interrogação, sobre tudo isso que para mim é a história mesma da Rússia, quase nada encontro nessas 1400 páginas. A história é aquilo que não encontro nessa História da Rússia..."

Mas a tão falada ruptura entre o 'positivismo' e a 'escola dos Annales' não é tão brusca assim: a história muda de rumo, mas continua sendo científica. Os annalistes, ao mesmo tempo em que rejeitam a "ciência estéril dos fatos" dos positivistas, aprovam com ardor a idéia de ciência social. E, não se pode deixar de lembrar, Marc Bloch apontou A cidade antiga, de Fustel de Coulanges, um positivista que comparava a história com a química e a geologia em seus escritos, como a obra fundadora da história social.

Esse parêntese científico parece ter se fechado. Lembro-me que, quando iniciei minha graduação, a grande discussão teórica do momento ainda voltava-se para essa questão: é a história uma ciência? Estávamos atrasados. Em um artigo de 1953, Hans-Georg Gadamer já havia afirmado que as 'ciências do espírito' estavam mais próximas "da intuição do artista" do que do "espírito metodológico da investigação". Hoje, a 'virada lingüística' e a história cultural parecem ter completado o processo e varrido a 'ciência da história' para o passado. Embora o termo ainda apareça aqui e ali (por exemplo, no artigo do prof. Norberto Luiz Guarinello, da USP, na Revista Brasileira de história há apenas 3 anos), a história hoje parece ter voltado a ser o que era para Cícero e Diderot, "a narração dos fatos verdadeiros", ou, para usar as palavras de Paul Veyne, "apenas um romance real".

quarta-feira, 25 de julho de 2007

Por uma história antropológica

No texto passado levantei a questão da função da história. E procurei mostrar que não há, hoje, qualquer tipo de 'utilidade' no saber histórico. No entanto, a pergunta permaneceu sem resposta: hoje, pra que serve a história?

Sou um defensor de uma função, na falta de uma palavra melhor, 'antropológica' da história. Assim como a antropologia (talvez eu fosse mais preciso se dissesse etnologia), a história deve servir para nos apresentar outras possibilidades. Deve servir para nos mostrar que nossa sociedade, nosso pensamento, nossas crenças não têm nada de 'natural' e que existiram diversas outras sociedades, outros pensamentos e outras crenças na humanidade. Que mesmo aqueles que consideramos 'nossos ancestrais' são radicalmente diferentes de nós.

Norbert Elias foi uma figura fundamental para que essas idéias se desenvolvessem em minha cabeça. Em seus textos sobre história dos costumes, no primeiro volume de O processo civilizador, descobri que tendemos a naturalizar coisas que são historicamente formadas. Até mesmo ir ao banheiro é uma ação que se desenvolveu em um certo período da história e não um processo 'natural' do ser humano. Nada no mundo humano é 'natural'. Toda a nossa vida se dá “sob a direção dos padrões culturais, sistemas de significado criados historicamente em termos dos quais damos forma, ordem, objetivo e direção às nossas vidas” (Clifford Geertz).

A tradição ocidental freqüentemente viu em Tucídides “o começo da verdadeira história” (David Hume). Para realizar sua ambição de escrever uma história que fosse instrutiva para todos os povos em qualquer tempo, o ateniense minimizou as diferenças entre os costumes (nomós) e favoreceu as semelhanças entre as naturezas (phýsis) de seus personagens. Desde então, a historiografia tendeu a apagar as diferenças entre os homens: a Grécia foi a infância do mundo, todos somos romanos de alguma maneira, os franceses descendem dos gauleses e os ingleses dos saxões. Pouco ganhamos com essa abordagem. O papa pode ser até hoje o pontifex maximus, mas entre Joseph Ratzinger e um sacerdote romano (e entre ambos e Gregório, o grande) há mais discrepâncias do que semelhanças.

Foi Paul Ricœur quem primeiro me chamou a atenção para a importância da alteridade na história. No último capítulo do último volume de Tempo e narrativa, discutindo as categorias do tempo histórico de Reinhart Koselleck, Ricœur observa que nossas possibilidades de futuro são baseadas, em parte, em nossas experiências de passado. Portanto, para alargar nossas possibilidades de futuro, é importante expandirmos nossas experiências de passado. Com isso, ao invés de esquadrinharmos o passado em busca de ancestralidades ou de tentarmos descobrir como nossa sociedade atual se formou, é mais interessante encontrarmos nele "possibilidades esquecidas, potencialidades abortadas, tentativas reprimidas". Por isso falei em sala de aula há algum tempo, em parte brincando, em parte a sério, certamente provocando, que era mais importante estudar a história da China antiga do que a história do Brasil. Me interessa muito pouco saber como nosso país se formou; me interessa muítissimo saber o que nunca fomos, para podermos pensar melhor o que queremos vir a ser.