segunda-feira, 10 de setembro de 2007

O problema da história cultural

O seminário Antigos e Modernos foi aberto pelo professor Ulpiano T. Bezerra de Menezes, da USP, e seu discurso foi auspicioso. Resumindo, ele falou algo como: é muito bom reunirmos pesquisadores para pensar e discutir seu ofício, escrever a história, quando vemos a maioria das universidades brasileiras produzindo uma história que não discute seus temas: identidade, cultura, "e, principalmente, representação". Em sua conferência, no segundo dia do seminário, ele voltou à carga: a história cultural é "despolitizada", "abstrata", ela faz história "como se vivêssemos em um universo puro de sentido".

É necessário, porém, fazer uma ressalva. O problema não está na história cultural. Quem foi meu aluno de História Contemporânea sabe que eu adoro A sagração da primavera, do historiador canadense Modris Eksteins, quase quinhentas páginas de história cultural que são leitura obrigatória no meu curso. O problema é a história cultural mal feita. Essa história que, infelizmente, tem sido muito freqüente nos últimos anos.

De fato, não há nenhum problema em fazer história usando conceitos como representação e identidade. Ou fazer história da cultura popular ou da cultura oral. O problema é usar conceitos como fórmulas, sem discuti-los, sem problematizá-los. O problema é ler um historiador e usar seu método e seus conceitos como uma receita para estudar qualquer coisa. O problema é fazer história como se a cultura fosse independente da sociedade que a produziu.

Me parece impossível discutir história sem discutir seus conceitos. Se algum historiador acha, à sério, que "tudo é representação" ou que "tudo é cultura" (e eu já ouvi as duas afirmações), então temos um problema. Porque se "tudo é representação", eu posso dizer que qualquer coisa é uma representação e, conseqüentemente, toda vez que eu fizer essa observação ela é vazia. Se eu disser que eu estudo as representações de alguma coisa, o que eu estou estudando? Do mesmo modo, se "tudo é cultura", então o que é a história da cultura? É claro que termos como 'representação' e 'cultura' não têm definições fáceis, mas acho que os historiadores que os usam deveriam ter mais cuidado ao utilizá-los. Estudando para minha tese de doutorado, por exemplo, encontrei um antropólogo, Richard Handler, que argumenta que 'identidade' é um termo "peculiar ao moderno mundo Ocidental" e que seu uso "como uma ferramenta conceitual trans-cultural neutra deve ser evitado". Não sei se ele está certo, mas tenho certeza de que diversos historiadores deveriam lê-lo e pensar um pouco melhor antes de escrever sobre essa questão.

Aqui no Brasil temos a tendência - e isso ultrapassa as fronteiras da história cultural - de ler alguma autoridade e usar suas questões para discutir os assuntos que nos interessam. Lembro-me de que uma vez me falaram de um aluno que apresentou ao programa de pós-graduação da UnB uma proposta para estudar a Suma teológica, de São Tomás de Aquino, com a metodologia de Roger Chartier. Como??? Desde os Annales que sabemos que "ao definir o seu objeto de estudo, o historiador tem igualmente de 'inventar' as suas fontes, que geralmente não são apropriadas, tal como estão, ao seu tipo de curiosidade" (François Furet). Ou seja, o historiador 'cria' sua metodologia a partir de seu objeto de estudo. As fontes e o 'modo de usá-las' são específicos a um problema e é extremamente difícil adaptá-los a problemas e questões diferentes. Se vou estudar a comida típica no Brasil contemporâneo ou o comércio livreiro na França setecentista, me parece óbvio que eu terei que usar questões diferentes, fontes diferentes e métodos diferentes.

Finalmente, as idéias e a cultura não podem ser desligadas do mundo. Qualquer manifestação cultural tem significados que ultrapassam o mundo cultural e se relacionam com a sociedade, a economia e a política da população. Deixar esses significados de lado é, na minha opinião, ignorar uma faceta importante da produção cultural. É como tentar discutir as idéias de Marx e 'esquecer' que houve uma Revolução Francesa antes dele e que havia uma Revolução Industrial ocorrendo enquanto ele escrevia. A história cultural e a história das idéias não podem enveredar por esse caminho.

Para concluir, volto à conferência do professor Ulpiano. Falando sobre a 'abstração' da história recente, ele levou a questão à discussão da fonte histórica, o documento, que era o tema central de sua conferência. A história cultural mal feita tem colocado uma tal ênfase nas novas fontes e em suas possibilidades que corremos o risco de criar um novo descolamento e passar a fazer uma "história documental". É preciso estar atento e lembrar que a fonte é apenas um documento. Ao invés de fazer 'história iconográfica', devemos fazer 'história da sociedade na dimensão iconográfica'. Ao invés de fazer 'história oral', 'história da sociedade na dimensão oral'.

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