domingo, 9 de setembro de 2007

Generalizações e abstrações da história - e a questão da história científica (de novo!)

Como são as coisas... há menos de um mês eu escrevi neste blog um texto sobre a história científica criticando um artigo do professor Norberto Luiz Guarinello (por ainda utilizar essa idéia ultrapassada) e, na quinta-feira, 6 de setembro, assisti uma conferência do próprio professor Guarinello, muito simpático e bem-humorado, e me vi concordando com muitos dos pontos apresentados por ele.

O tema foi 'A criação da História Antiga', ou seja, a discussão da"artificialidade das fronteiras internas que a história científica criou para si mesma".

Segundo o professor Guarinello, o procedimento básico para a leitura de um documento histórico é a generalização. É através da criação de abstrações conceituais como 'Antigüidade tardia', 'cultura mediterrânica', 'economia antiga' e outras que podemos comparar documentos e fazê-los dialogar entre si. A descoberta de um papiro egípcio com dados sobre uma fazenda do período romano não teria nenhum sentido se não pudéssemos compará-lo com dados de outras unidades econômicas defasadas no tempo e no espaço. Assim, colocamos lado a lado produções oriundas da Itália, do Egito, da Espanha e falamos de uma 'cultura mediterrânica'. Comparamos documentos produzidos entre os séculos IV e VII e falamos de uma 'Antigüidade tardia' ou, então, de uma 'Primeira Idade Média'. Comparamos dados sobre escravidão, produção de alimentos, comércio e minas de prata para falar de uma 'economia antiga'. Sem essas abstrações e generalizações é impossível fazer história, mas é essencial que os historiadores estejam alertas para a sua arbitrariedade.

Essa arbitrariedade reaparece na questão dos períodos históricos e na divisão das disciplinas de uma universidade. Noventa e nove entre cem cursos de história no Brasil apresentam as disciplinas 'História Antiga', 'História Medieval', 'História Moderna', 'História Contemporânea', 'História da América' e 'História do Brasil'. Por que? A América tem uma história separada daquela do continente europeu? É possível separar o Brasil da América? Não há uma 'história contemporânea da América' ou uma 'história antiga do Brasil'?

Na verdade, como ressaltou o professor Guarinello, essa divisão traduz ainda uma questão ideológica: haveria uma continuidade na história do mundo que permitiria examinar as origens de nossa civilização até a Antigüidade. Assim, a 'História Antiga' não é apenas a história das civilizações que existiram em um determinado período de tempo, mas a 'história das origens antigas do mundo contemporâneo'. Já falei neste blog contra essas apropriações da Antigüidade e o professor Guarinello foi igualmente duro ao atacar esse tipo de história: deve-se fazer História Antiga buscando-se entender as civilizações antigas por seu próprio mérito; buscando compreendê-las em suas próprias especificidades.

Mas há ainda uma outra questão que não foi abordada na palestra do professor Guarinello: por que seguir essa divisão historiográfica? A divisão das disciplinas da história acadêmica surgiu no século XIX, quando a história se profissionalizou e tornou-se necessário escrever a história do mundo pós-Revolução Francesa (para detalhes, recomendo o artigo 'O nascimento da história', de François Furet, publicado em seu livro A oficina da história). Essa divisão não mudou até hoje. Aqui no Brasil, apenas acrescentamos nossas 'disciplinas específicas', as histórias da América e do Brasil (e, mais recentemente, a 'História da África'). Mas, se reconhecermos a arbitrariedade e a artificialidade das fronteiras internas à história, por que não podemos mudá-las? Por que não estudar 'História do capitalismo' ou 'História da democracia' ou 'História da escravidão' ou 'História das colonizações' ou 'História da tecnologia'? Seriam divisões igualmente arbitrárias, mas, afastando-se das divisões oitocentistas, creio que uma divisão temática das disciplinas históricas refletiria melhor os rumos que a história pretende seguir hoje.

Ao final da palestra, quando a palavra foi dada ao público, o professor Francisco Murari Pires, organizador do seminário e professor de história antiga da USP, interpelou o palestrante em relação a seu uso do termo 'história científica'. Era a pergunta que eu gostaria de ter feito: "por que história científica? De que ciência estamos falando?"

Disse o professor Guarinello que "uma auto-definição da história como ciência é um ato de poder social", pois "a ciência é uma instituição do mundo moderno" - e uma das instituições modernas de maior prestígio. Além disso, a ciência é eminentemente leiga: "se não rotularmos a história como ciência, como argumentar contra explicações religiosas para o passado?"

Para o professor Guarinello, no entanto, o pressuposto de que a história seja uma ciência traduz-se na idéia de que "o passado é ordenado, que o passado é racional e pode ser apreendido racionalmente através dos vestígios". Discordo fundamentalmente dessa idéia. Creio que a 'ordenação' e a 'racionalidade' do passado aparecem apenas depois que o historiador organiza os vestígios em sua trama, em seu enredo histórico. Para mim, o passado não é nem ordenado, nem racional, somos nós que o produzimos assim.

Ao final de tudo, o professor Murari ainda não parecia convencido, como eu também não estou, da necessidade do rótulo de ciência para a história. Disse o professor Guarinello, "essa é a marca de um bom cientista". Apesar de não concordar com tudo, sou obrigado a aplaudir uma excelente conferência.

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