terça-feira, 26 de junho de 2007

Controvérsias historiográficas

A revista Veja, em sua edição da semana passada (nº 2013, datada 20/junho/2007), publicou um artigo sobre historiografia, Controvérsias na Corte. Em três páginas, o jornalista Marcelo Bortoloti descreve as discordâncias entre diversos historiadores a respeito da quantidade de pessoas que teria chegado ao Brasil em 1808 acompanhando a família real portuguesa. O jornalista faz um bom trabalho ao ressaltar a inexistência de fontes e inclui um infográfico com o número preferido de cada historiador, desde o século XIX até o próximo livro a ser lançado. Ao final da matéria, ainda fala um pouco do impacto que a chegada do príncipe regente e sua corte teve na colônia americana. Uma boa matéria, em suma.

Mas dois possíveis desdobramentos não são abordados:

Em primeiro lugar, pergunto eu: "e daí?" Qual a importância de sabermos se 4.500, 30.000, 16.000 ou apenas 500 pessoas chegaram ao Rio de Janeiro há duzentos anos? Para não-historiadores, todo e qualquer número, seja a data da coroação de Carlos Magno, seja o número de vítimas da II Guerra Mundial, é apenas curiosidade, mas por que um historiador deveria se debruçar sobre essa questão? De fato, seria uma questão caríssima aos historiadores do século XIX (vulgarmente reunidos sob o nome de 'positivistas'), mas me soa, hoje, bizantina. Há muito que os historiadores sabem que "o fato que se passou realmente ou as condições da vida verdadeira de cada época nos escaparão sempre"; sabemos que o passado só se nos apresenta "através de uma barreira deformadora: as fontes que deles falam", para usar as palavras de Georges Duby. Sou um ignorante confesso de história do Brasil, mas creio que, para o exame do impacto causado pela chegada dos nobres portugueses (uma questão realmente importante), é irrelevante sabermos se aqui aportaram de fato 4.503 ou 16.058 pessoas.

A segunda pergunta (desdobrada em três) foi feita pelo meu amigo Pedro Burgos, jornalista que, entre outras coisas, escreve um blog sobre Second Life para a Superinteressante: "até que ponto é possível confiar nos historiadores? Já houve alguma revisão mais drástica em relação à história, especialmente a brasileira? Há algum livro sobre erros históricos?" Bom, se por "confiar nos historiadores" a pergunta se refere a saber se os historiadores estão relatando corretamente o que ocorreu, já vimos que podemos sempre confiar nos historiadores: eles sempre têm certeza de que não estão escrevendo a verdade dos fatos. Simplesmente porque essa verdade não existe. As fontes, nosso único canal com os acontecimentos, guiam nossa visão, mas elas não são os acontecimentos (pode-se lembrar de Nietzsche: "não existem fatos, apenas interpretações". Ou então de Fernando Pessoa, que, com a genialidade habitual, relatou o caso de dois amigos que lhe contaram a verdade sobre o mesmo evento e, não obstante, contaram duas histórias completamente diferentes). O fato é que toda história é especulação e - terreno perigoso! - contém uma parcela de imaginação.

O que nos leva ao último ponto: revisões e erros históricos. Como a história é baseada em interpretação de fontes, nada impede que essas interpretações mudem com o tempo. Na verdade, como a maneira de pensar da humanidade muda com o tempo, as interpretações feitas pelos historiadores vão mudar. Conseqüentemente, aquilo que era certo e verdadeiro em uma determinada época pode ser desconsiderado posteriormente. Isso é muito comum e exemplos não faltam (o artigo sobre 'Revisionismo histórico' na Wikipedia traz vários deles), embora eu não conheça nenhum livro que discuta ou faça uma lista de erros históricos. O fato é que a história está sempre se revisando, ou seja, cada época escreve história baseada em suas próprias idéias e interesses, renovando-a para que faça sentido para sua atualidade. Nesse sentido, "toda história é contemporânea" e "toda história é revisionista".