quarta-feira, 25 de julho de 2007

Por uma história antropológica

No texto passado levantei a questão da função da história. E procurei mostrar que não há, hoje, qualquer tipo de 'utilidade' no saber histórico. No entanto, a pergunta permaneceu sem resposta: hoje, pra que serve a história?

Sou um defensor de uma função, na falta de uma palavra melhor, 'antropológica' da história. Assim como a antropologia (talvez eu fosse mais preciso se dissesse etnologia), a história deve servir para nos apresentar outras possibilidades. Deve servir para nos mostrar que nossa sociedade, nosso pensamento, nossas crenças não têm nada de 'natural' e que existiram diversas outras sociedades, outros pensamentos e outras crenças na humanidade. Que mesmo aqueles que consideramos 'nossos ancestrais' são radicalmente diferentes de nós.

Norbert Elias foi uma figura fundamental para que essas idéias se desenvolvessem em minha cabeça. Em seus textos sobre história dos costumes, no primeiro volume de O processo civilizador, descobri que tendemos a naturalizar coisas que são historicamente formadas. Até mesmo ir ao banheiro é uma ação que se desenvolveu em um certo período da história e não um processo 'natural' do ser humano. Nada no mundo humano é 'natural'. Toda a nossa vida se dá “sob a direção dos padrões culturais, sistemas de significado criados historicamente em termos dos quais damos forma, ordem, objetivo e direção às nossas vidas” (Clifford Geertz).

A tradição ocidental freqüentemente viu em Tucídides “o começo da verdadeira história” (David Hume). Para realizar sua ambição de escrever uma história que fosse instrutiva para todos os povos em qualquer tempo, o ateniense minimizou as diferenças entre os costumes (nomós) e favoreceu as semelhanças entre as naturezas (phýsis) de seus personagens. Desde então, a historiografia tendeu a apagar as diferenças entre os homens: a Grécia foi a infância do mundo, todos somos romanos de alguma maneira, os franceses descendem dos gauleses e os ingleses dos saxões. Pouco ganhamos com essa abordagem. O papa pode ser até hoje o pontifex maximus, mas entre Joseph Ratzinger e um sacerdote romano (e entre ambos e Gregório, o grande) há mais discrepâncias do que semelhanças.

Foi Paul Ricœur quem primeiro me chamou a atenção para a importância da alteridade na história. No último capítulo do último volume de Tempo e narrativa, discutindo as categorias do tempo histórico de Reinhart Koselleck, Ricœur observa que nossas possibilidades de futuro são baseadas, em parte, em nossas experiências de passado. Portanto, para alargar nossas possibilidades de futuro, é importante expandirmos nossas experiências de passado. Com isso, ao invés de esquadrinharmos o passado em busca de ancestralidades ou de tentarmos descobrir como nossa sociedade atual se formou, é mais interessante encontrarmos nele "possibilidades esquecidas, potencialidades abortadas, tentativas reprimidas". Por isso falei em sala de aula há algum tempo, em parte brincando, em parte a sério, certamente provocando, que era mais importante estudar a história da China antiga do que a história do Brasil. Me interessa muito pouco saber como nosso país se formou; me interessa muítissimo saber o que nunca fomos, para podermos pensar melhor o que queremos vir a ser.

terça-feira, 24 de julho de 2007

Pra que serve a história?

Escândalo na Bélgica! No último sábado, 21 de julho, feriado nacional, um repórter perguntou ao próximo primeiro-ministro do país, Yves Leterme, se ele sabia o hino nacional. "É claro", respondeu o político, e imediatamente começou a cantar a Marselhesa, hino nacional da França. Para completar a gafe, perguntaram-lhe o que se comemorava no dia 21 de julho e ele respondeu que era a "proclamação da Constituição". Não era (vocês podem ver a reportagem da BBC Brasil ou então o vídeo do PM cantando no YouTube).

Oh! Que horror! Um primeiro-ministro que não sabe a história do país. Pois é, mas ao invés de me escandalizar, eu fico pensando: por que um político tem que saber história? Aliás, pra que serve a história?

Luciano, autor do único manual de historiografia da Antigüidade, respondeu, citando Tucídides: "a utilidade é o fim da história, de modo que, se alguma vez, de novo, acontecerem coisas semelhantes, poder-se-á, consultando-se o que foi escrito antes, agir bem em relação às circunstâncias que se encontram diante de nós." Seja política (Tucídides, Luciano), seja moralmente (Plutarco, Cícero), a história era a educadora do futuro, a "mestra da vida".

Mas, entre os séculos XVI e XVIII, a idéia do futuro como uma repetição modificada do passado foi abalada. Nada do que ocorrera antes permitira prever acontecimentos como a Reforma ou a Revolução Francesa (para saber mais sobre esse processo, ver o sensacional livro de Reinhart Koselleck, Futuro passado, finalmente lançado no Brasil). Foi Alexis de Tocqueville quem melhor sintetizou essa época de incertezas ao afirmar: "desde que o passado deixou de lançar luz sobre o futuro, o espírito humano erra nas trevas."

Se a Revolução Francesa derrubou o rei, coroou em seu lugar a nação. E, com isso, o século XIX encontrou uma nova finalidade para a história. A história era a ciência que permitia 'provar' a nação. Milhares de historiadores se debruçaram sobre documentos antigos tentando decifrar as origens de suas nações e, conseqüentemente, demonstrar sua eternidade. Para Michelet, a função da história era "esclarecer o sentido dos ancestrais desaparecidos".

Só que o nacionalismo foi aniquilado pela Segunda Guerra Mundial. O pós-guerra se voltou para as ideologias e, mesmo quando as nações voltaram à tona depois da queda do muro de Berlim, a história já não tinha mais a mesma importância. Hoje sabemos que a nação é uma construção narrativa e a história, longe de sacramentá-la, é usada como arma para derrubar a idéia romântica de uma essência nacional. Mutilada de sua função política e atacada pelo flanco epistemológico, a história entrou em crise.

Então, voltamos à pergunta inicial, pra que serve a história hoje? Por que falar mal de um político que não conhece história? O futuro primeiro-ministro não sabia o que se comemora na Bélgica no dia 21 de julho, mas, pergunto: alguém sabe? De acordo com uma pesquisa de opinião citada pelo canal RTBF, apenas um em cada cinco belgas sabe (21 de julho de 1831 foi a data da coroação do primeiro rei da Bélgica, Leopoldo I). Pra mim, é evidente que se a utilidade era a função da história para Tucídides, hoje é muito mais útil saber economia, direito, ciência política, relações internacionais...

sexta-feira, 20 de julho de 2007

Religião e história

O último texto me deu um bocado de trabalho. Passei uns dez dias escrevendo-o e reescrevendo-o e nunca me dava por satisfeito. No fim das contas, resumi drasticamente seu tema e falei apenas da má leitura de um documento histórico que, por acaso, era a Bíblia. Minha intenção original, no entanto, era discutir as relações entre história e religião de uma maneira bem mais abrangente. Não consegui.

Hoje de madrugada, passeando pela Internet no meio da minha frustração, descobri que a revista History and theory, a mais importante e reconhecida revista acadêmica dedicada ao campo da teoria da história, publicou, em dezembro do ano passado, um número especial intitulado - adivinhem! - 'Religion and history'.

E o que History and theory tem a dizer sobre isso? Bem, os artigos completos não estão disponíveis, mas seus resumos já nos dão uma amostra. A ênfase é, como seria de se esperar, teórica: artigos como 'Transcendendo dicotomias na história e na religião', de C.T. McIntire, ou 'Sobre o preconceito secular no estudo da religião', de Brad S. Gregory, não deixam dúvidas a esse respeito. Um dos resumos, no entanto, me chamou imediatamente a atenção e vou traduzi-lo aqui. Trata-se de 'História e religião na era moderna', de Constantin Fasolt (os grifos são meus):

"Este ensaio busca clarificar a relação entre história e religião na idade moderna. Ele [...] sustenta que a história conta com os mesmos meios que a religião para alcançar os mesmos resultados. A virada para a evidência histórica realizada pelos historiadores e seus leitores é mais que um caminho para o conhecimento. É um ritual religioso desenhado para fazer seus participantes se sentirem em casa em seu ambiente social e natural. De modo muito parecido com a representação da morte e da ressureição de Cristo na Missa, a representação histórica do passado sublinha a fé na liberdade humana e a esperança na redenção do sofrimento. Ela ajuda os seres humanos a encontrarem seus caminhos na era moderna sem ter que ir a igrejas pré-industriais e rezar de velhas maneiras agrárias. A história não entra em conflito com a religião apenas porque ela a revela fundada em crenças que não são suportadas pelas evidências. A história entra em conflito com as religiões históricas porque ela é uma religião rival."

Uau! Fica difícil falar qualquer coisa sem ler o artigo completo, mas a idéia é interessante. E polêmica! No mesmo número da mesma revista, já aparece uma resposta que, segundo o resumo disponível, "rejeita tanto sua [de Fasolt] visão romântica da religião passada como uma conciliadora pacífica, quanto sua visão pessimista da religião atual como uma criadora de 'inimigos' entre os povos modernos. [...] Na minha opinião, a história que Fasolt conta é tanto muito amarga (sobre a alienação humana) quanto muito otimista (sobre a história como a salvadora moderna)". A primeira vista, concordo e discordo de muitas coisas nesses resumos. Minha única certeza no momento é que eu quero ler esses artigos e discutir essas idéias.

domingo, 15 de julho de 2007

Como não ler uma fonte histórica

O tema dessa conversa veio ao meu encontro na semana passada. Estava em uma Missa e assisti a uma exibição explícita de como ignorar a historicidade de um texto. Giambattista Tiepolo, A expulsão de Agar (1719)Era a história de Agar e Ismael (Gênesis 21, 8-21). A Bíblia conta que, como Sara, sua esposa, não lhe dava filhos, Abraão deitou-se com uma escrava, Agar, e esta lhe deu um filho, Ismael. Anos depois, com o nascimento de seu filho legítimo, Isaac, Sara pediu que Abraão expulsasse o filho da escrava para que este não viesse a dividir sua herança. Abraão o fez, mas Deus salvou Agar e Ismael no deserto, prometendo-lhe fazer da criança "uma grande nação".

O padre que celebrava a Missa, em primeiro lugar, afirmou que Sara pediu a expulsão de Ismael porque este maltratava seu filho Isaac. O texto da Bíblia de Jerusalém (Gênesis 21, 9) diz explicitamente que ambos "brincavam", um jogo de palavras com o nome de Isaac (em hebraico, o verbo que dá origem a seu nome significa 'rir' ou 'brincar'). É no capítulo 16 (vv. 4-6) que o Gênesis afirma que Agar, grávida, olhava Sara com desprezo e esta passou a tratá-la mal. O padre mesclou duas passagens distintas para justificar a expulsão de Ismael (identificado na exegese cristã com a antiga tradição judaica, rejeitada). Depois, lembrando que as tradições judaica e islâmica consideram Ismael como o ancestral do povo árabe, o padre ainda afirmou que isso mostrava que a questão atual entre árabes e judeus não era uma questão política, mas sim religiosa. Como se israelenses e palestinos fossem crianças brincando.

Outro problema de interpretação foi quando o padre afirmou que a Bíblia não hierarquizava a relação entre homens e mulheres, pois a decisão de expulsar Agar partiu de Sara, e Abraão não fez mais do que o que sua mulher pedia. Para corroborar essa idéia, lembrou o trecho da Bíblia que narra a criação da mulher a partir de uma costela do homem. Disse o padre: "Deus não fez a mulher nem do pé, para ficar abaixo, nem da cabeça, para estar acima, mas da costela, para estar ao lado". Na verdade, o padre esqueceu de ler a passagem por inteiro. No Gênesis, Deus diz que "não é bom que o homem esteja só. Vou fazer uma auxiliar que lhe corresponda." (2, 18 grifo meu). É para auxiliar o homem que Deus faz surgir a mulher da costela de Adão (2, 21-22). Simplesmente não se pode, historicamente falando, ignorar essas afirmações e fazer uma interpretação pós-moderna da Bíblia.

Na verdade, essa conversa procura mostrar como é possível interpretar mal uma fonte histórica. Não se trata de uma particularidade da Bíblia. Em qualquer texto, é possível escolher trechos, citar passagens fora de contexto e sugerir idéias que são, muitas vezes, completamente rechaçadas em outros trechos do mesmo documento. Não me lembro quem foi que falou, mas é uma idéia brilhante: "até o Diabo pode citar as Escrituras para se defender".

terça-feira, 10 de julho de 2007

Como criar um fato histórico

Após uma inesperada pausa, voltamos à nossa programação normal...

A conversa anterior rendeu alguns comentários interessantes. Afinal de contas, ela toca diversos temas bastante complicados para a história. Um deles é a própria questão dos eventos, comumente chamados de "fatos históricos". Podemos discutir suas causas e conseqüências, detalhes, números, mas não podemos ignorar que os eventos ocorreram, não é? Apesar de não sabermos quantas pessoas vieram, nada pode mudar o fato de que a família real veio ao Brasil, certo?

Depende. Essas coisas aconteceram, mas, como eu já disse antes, "e daí?". Pessoas vão e vem todos os dias. A pergunta correta é: "por que a vinda da família real para o Brasil em 1808 tornou-se especial e ganhou o status de um fato histórico?" Resposta: porque ela é parte de uma trama, de uma explicação: a vinda da família real explica a independência do Brasil.

Aliás, a própria independência é um bom exemplo de como os fatos históricos são criados. Por que o 'grito do Ipiranga' faz parte da história canônica da nossa independência e a batalha naval de Salvador (4 de maio de 1823) não faz? Foi nessa batalha que um mercenário inglês contratado em Buenos Aires por José Bonifácio derrotou a armada portuguesa enviada para combater as forças do império brasileiro. Graças a essa vitória, as forças leais a Portugal tiveram que abandonar Salvador e entregaram a cidade ao império pouco menos de dois meses depois (alguém já se perguntou porque o aeroporto dessa cidade chamava-se 2 de julho?). Esses eventos foram escondidos da história da independência do Brasil porque era necessário mostrar o Brasil como um país uno, que já existia antes do 7 de setembro. Para criar esse Brasil uno, que nunca existira, era necessária uma independência consensual de todo o território brasileiro (para mais detalhes dessa história não-oficial da criação do Brasil, recomendo o livro Brazil, the forging of a nation, 1798-1852, de Roderick J. Barman).

Isso acontece com todos os fatos históricos. Eles não são nada mais nada menos do que 'episódios dramáticos' nas 'tramas narrativas' da história. Talvez o melhor exemplo seja a guerra do Peloponeso. Tucídides contou algumas batalhas entre atenienses e espartanos e chamou seu conjunto de "guerra dos atenienses e peloponésios". As batalhas entre as duas cidades começaram antes da data escolhida por Tucídides e ambas continuaram a lutar entre si e com as outras cidades da Grécia depois da destruição dos muros de Atenas, mas a narrativa do historiador ateniense é tão completa e sua autoridade é tão forte que até hoje separamos aquelas batalhas das outras e as chamamos de guerra do Peloponeso.

Os eventos ocorreram, ok. Mas quem dá significado a eles e os transforma em 'acontecimentos históricos' são os escritores de histórias. Como disse uma vez o romancista inglês Samuel Butler, "Deus não pode alterar o passado, mas os historiadores podem".